segunda-feira, 19 de abril de 2010

O aqui também é lá

por Marisa Flórido Cesar


Desenhar à asfixia o horizonte, ordenar ao desatino o espaço da vida. De tal modo que, ao fim desse projeto, era a própria humanidade que se construiria como obra. Uma humanidade de semelhantes, substancial, todavia ilusória. Esse foi o projeto da História e o ideal moderno da arquitetura, do qual o edifício de Affonso Eduardo Reidy tornou-se um ícone: se o tempo se desenrolava em direção a um horizonte comum, o espaço deveria ser a extensão redentora, o receptáculo que a todos resguardaria. Ao homem redimido seria prometido o acesso absoluto, o abrigo universal. Babel antes da queda e da dispersão das línguas, Babel reconstruída. Uma promessa a um só tempo acolhedora e autoritária. Tensão perpétua entre o desejo de interferência e mudança e os delírios de ordem e controle sobre os acidentes e as singularidades.

Sem lugar e ocasião para a alteridade, para os desvios e as fugas, as utopias históricas — do marxismo aos fascismos (a face obscura e violenta desse desejo de totalidade) — ruíram ali mesmo onde se ergueram. E se testemunhamos, hoje, o esgotamento dessa promessa, também assistimos ao fracasso do projeto da cidade do Homem. O mundo único, idêntico e comum revela-se espectral; a humanidade, fantasmáticai.

Desde logo, o coletivo Frente 3 de Fevereiro definiu sua pretensão. Não o edifício, a fita ondulante sobre pilotisii, ou as táticas do habitat. Nem intervir artisticamente em sua materialidade, nem nas dinâmicas sociais dos que ali hoje vivem, mas enfrentar aquilo que o projeto moderno nos deixou como legado em suas faces assombrosas e assombradas. Se a arquitetura moderna se pretendia acolhedora, seria preciso enfrentar o que foi expurgado de seu ideal, enfrentar a cidade como a arena dos conflitos e da convivência de complexas diferenças. Pensar a cidade por seus guetos e exclusões, mas também a partir – e além – do ícone moderno (o edifício transformado em imagem veiculada em livros e sites sobre arquitetura), pensar a própria cidade como extrema exposição, exibindo-se como imagem e espetáculo. Afinal, este é um mundo que se produz sob a lógica imanente do capital, na velocidade da informação, na disputa do monopólio das visibilidades (ou, como preconizaria Guy Debord, o capital atingiria tal grau de acumulação que se tornaria imagem, invadindo e mediando a vida socialiii). As cidades, outrora espaço por excelência da vida em comum, relacionam-se doravante em rede. Âncoras dos fluxos desterritorializados de capital e informação, competem para atraí-los e concentrá-los: competem por um museu ou para sediar grandes eventos como as olimpíadas. A própria cidade, tornando-se um grande evento, retira-se para essa dimensão espetacular: a cidade da era turística é aquela que se exibe e existe como se separada de si. E, no entanto, enquanto as cidades tornam-se protagonistas da sociedade do espetáculo, os conceitos de civilidade e cidadania, a ela intimamente relacionados, debatem-se extenuados em suas fronteiras e em suas guerras intestinas. Se no tempo e espaço encerravam-se as grandes esperanças de transformação do passado, é a imagem que agora explicita seus poderes (um poder que, de fato, remonta a milênios).

Se o mundo se experimenta em rede, na simultaneidade das ocasiões, na atopia e distopia do espaço, nas guerras por territórios, as relações de força e os dispositivos de poder também operam em rede, incidindo sobre as formas de vida de modo muito mais sutil e interiorizado — conformando-as, incidem sobre o desejo e a linguagem, os corpos e a percepção, as relações e os saberes, as subjetividades e as ações... Uma dominação, mais disseminada e invisível que as colonizações do passado e as ideologias modernas, se instaura: uma sociedade sob a vigilância “de técnicas de controle e comunicação instantânea”iv, definiria Deleuze; uma sociedade espetacularizada, anteveria Debord.

A essa humanidade fantasmática, a essa espetacularização da vida, a essa comercialização do visível, as artes responderiam de modo diverso e paradoxal, em relações de resistência e inelutável conivência. E não apenas porque a arte alimenta o marketing cultural (e dele também se sustenta), conferindo visibilidade a empresas ou governos, ou porque é convocada a alavancar reformas urbanas em áreas degradadas. Mas porque todos os poderes (como o capital, a imagem, a mídia) não são exteriores, moldam a vida e as subjetividades, investem sobre aquilo que nomeamos “arte” de modo intrínseco, inseparável, avassalador. A resistência da arte é, portanto, também uma resistência a si mesma e uma resistência ao que somos. Eis seu impasse e seu desafiov.

O Rio de Janeiro não permaneceria insensível ao redesenho das forças. Nestas últimas décadas, se empenharia em atrair um grande museu internacional, concorreria para sediar grandes eventos esportivos, como as Olimpíadas de 2016. Enquanto isso, a cidade dilacerava-se em suas guerras viscerais, em suas tragédias cotidianas e seus assassinatos desatentos. A cidade-narciso cintilava seu charme enquanto a cidade-medusa a fitava com os olhos da morte.

Por isso o foco do coletivo convergiria para as fronteiras internas da cidade; para a falácia por trás dos discursos de convivência pacífica das diferenças; para os símbolos manipulados e espetacularizados destes apaziguamentos e alegrias coletivas, como o carnaval e a praia. Sua atenção se voltaria, finalmente, para a inserção estratégica nas mídias como a televisão, para a intervenção na cidade-imagem.

O grupo partiria para a primeira favela que recebeu a Unidade de Polícia Pacificadora, a de Santa Marta. Entre os encantos e misérias que a assolam, investiriam contra o disparate que contradiz a proclamada concretização de um espaço vital comum e de um pacto social: o muro que cerca a favela e pretende conter sua expansão. Sobre ele, os artistas lutariam capoeira, como equilibristas das novas senzalas. Nele, pintariam um grande buraco como se o vazassem, ou então empinariam pipas. A arte sonha um mundo em que pipas fossem capazes de levar ao vento muros e apartheids. A arte imagina humanidades, além daquela vislumbrada pelo Humanismo ocidental. Humanidades por vir, fluidas, abertas, imprevisíveis. Humanidades do homem qualquer, no sentido que Agamben recuperou desse qualquer: do latim quodlibet, “qualquer que seja, o que se quiser, o que desejar”. O qualquer estabelece uma relação com o desejo e a vontade (libet): quodlibet ens é o ser que, tal como é, importa, é desejável em todos os seus atributos. Não é, portanto, o ser que “não importa qual, que nos é indiferente”, como em geral é traduzido. Nem identidade, nem conceito, o que determina a singularidade é a totalidade das possibilidades: o “tudo importar” do qualquer, não sua indiferençavi.

Quando, no carnaval carioca, eles invadem a Marques de Sapucaí com uma câmera e um microfone em mãos perguntando “o Rio continua negro?”, a ambivalência da palavra geraria incômodo aos entrevistados. A dubiedade de sentidos visava explicitar as discriminações raciais, a nefasta violência disseminada por séculos nestas terras, a espetacularização de uma festa e de uma música que se iniciou pelas margens. Mas enunciar “o Rio é negro” ou “nós somos negros” é sobretudo um ato de simbolização: entre uma subjetivação e sua predicação há um desvio, jamais uma coincidência ou mesmo uma identificação. Há, como diria Rancière, o salto da metáfora.

E se essa dissonância na cadência do samba-midiático pretende reivindicar lugares e ritmos diferentes daqueles que eram demarcados às existências, novas alegrias e outras vozes, também poderíamos dizer que tais lugares e tais ritmos querem estar em qualquer parte e em qualquer acorde do orbe. Um mundo, uma esfera azul flutuando nas mãos de uma multidão em delírio. Nela, a inscrição: “Haiti” e “aqui”. A esfera rodopiou sobre as cabeças, girou em órbita carnavalesca, quicou aqui e acolá no frenesi coletivo do bloco carioca, acabou espancada e combalida sob os pés de alguns.

O Haiti é aqui e aqui é lá, um aqui lá qualquer. O lugar que se quiser, que se desejar. Um qualquer desejante que não apenas se situe além de um espaço determinado, mas que seja a passagem, o acesso e a comissão de frente anunciando a cidade humana. Uma cidade que se abra à alteridade qualquer: do passista fenomenal ao ruim da cabeça e ao doente do pé.