domingo, 13 de julho de 2008

É COMO AS BARREIRAS FOSSEM QUEBRADAS

Pontuações conceituais para o trabalho ESQUINA DE MUNDOS:

1- A crise alimentícia global por si só propicia o deslocamento de populações;

2- Esta condição já estava contida, anteriormente, no movimento populacional através das fronteiras;

3- Agora, se descortina um movimento migracional, não só para o lugar de destino mas, sim, migrações inter-regionais chamadas “SUL a SUL”;

4- Dentro desses debates sobre desabastecimento alimentar e agrícola, a África tem um papel relevante. Para discutir o desabastecimento alimentar a África deve estar presente;

5- Isto se configura, neste momento, não mais como movimentos populacionais, mas sim, como pessoas que se relacionam. Ocorrem os atritos, as fricções, os conflitos – é o que parece se configurar nos últimos acontecimentos em que África do Sul viu-se envolvida com seus vizinhos: Zimbábue e Moçambique;

6- É aqui neste nicho que este trabalho ESQUINA de MUNDOS adquire uma relevância, pois transforma, transmuta os atritos, as turbulências, as agressões, as mortandades, em ponto de reflexão; fazendo do espaço urbano, um lugar do qual poderá vir a redefinição de uma vivência não sobreposta mas compartilhada.

7- E o olhar, daqueles que de lá vieram, agora lançado, não mais reflete a rota de navios negreiros, mas delineia novas formas de conviver, onde não só estejam opostos brancos/negros mas colored (miscigenados) indianos e imigrantes;

8- E nesse sentido, o "PARE e OLHE PARA A BASE" - tão usual para a FRENTE - parece nos levar em direção para o que denomino de uma real convivência cultural compartilhada, saindo desse caldeirão de atritos onde, na maioria das vezes, o resultado é violento. Parafraseando Rocha, é preciso apontar para a transformação da violência em uma forma de resistência simbólica;

9- Está tudo por fazer. Desta maneira, a Frente sendo resultante dessa migração de longa distância, a "migração de descobrimento", podemos tentar colocar esse projeto ESQUINA de MUNDO não apenas num ponto de confluência mas como um referencial que dê conta dessa convivência pós-Apartheid.

Está tudo por fazer.

E os três montes de terra começam a se dissolver numa verdadeira esquina; um cruzamento, mercado informal onde tudo acontece. No falar do angolano Zion: "É COMO AS BARREIRAS FOSSEM QUEBRADAS".

Um comentário:

Anônimo disse...

DEBATE ABERTO

Crônica de Joanesburgo (1)

Após Nairóbi, fomos a Joanesburgo, onde descobrimos que a periferia é nobre e o centro, periferia.

Flávio Aguiar



Depois do Fórum Social Mundial, e do fim da estadia em Nairóbi, a equipe da Carta Maior se dividiu. Bia Barbosa e Verena Glass foram para Ruanda, atrás do hotel famoso e outras informações sobre a antiga e a nova situação política naquele país. Eu e Marcel Gomes fomos para Joanesburgo, na África do Sul, conhecer a terra do apartheid (até pouco tempo atrás: apenas 12 anos!). Marcelo Theilicke e Maurício Hashizume já tinham voltado para o Brasil.

No caminho para o aeroporto, ainda em Nairóbi, uma surpresa: o irmão do agente de viagem, o já célebre no Brasil Maurice, que nos acompanhava com este no carro, desandou a falar sobre futebol brasileiro. Ele conhecia tudo, todas as escalações, partidas, técnicos, reservas, vitórias e derrotas da seleção brasileira desde 1994, mais ou menos. Conhecia o destino, os times, as condições técnicas de todos os jogadores brasileiros no exterior. Disse ainda que isso nada tinha de excepcional, que isso era comum no Quênia. E completou com um brinde especial para mim: disse que ele e milhares de quenianos tinham assistido, à uma da manhã (hora local), a vitória do Internacional sobre o Barcelona pela taça mundial inter-clubes, e que tinham comemorado, apesar da galera ser fã de Ronaldinho, porque o outro time era do Brasil. Vejam só o que é uma cultura bem informada, e bem formada!

Buenas, chegamos a Joanesburgo às 11h30 da noite. Tentar descobrir uma informação sobre hotel perto do aeroporto, e descobrir quanto custaria uma corrida de táxi até lá foi um complicado processo que durou uma hora e meia a mais. Tentei até descobrir com o cidadão da Casa de Câmbio, mas ele despachou-me com um ar de que eu o estava incomodando com perguntas inadequadas a uma da manhã. Talvez fosse o caso mesmo.

Ao fim e ao cabo conseguimos um lugar num hotel Fórmula 1, com uma companheira baiana que estava desesperada porque saíra da área de trânsito e não podia mais voltar para o hotel do aeroporto, que já tinha pago pela internet. A corrida, pela qual o motorista do aeroporto nos pedia 180 rands (mais ou menos 25 dólares), conseguimos por 60 chamando pelo telefone um táxi do estacionamento do hotel. Esta é uma guerra para a qual o viajante em terras africanas tem que estar preparado (em outras terras também, só que lá é mais constante): de fato não há em muitos lugares e serviços um preço fixo; ele é calculado na hora pela estimativa de quanto o freguês teria disponível para pagar.

No dia seguinte, nossa primeira providência foi tentar localizar um hotel mais conveniente. Encontramos (sempre tivemos sorte nisso, os da Carta Maior) um motorista que acabou ficando nosso amigo: Mr. Simon, e que nos guiou por Joanesburgo e arredores depois.

Diante da minha pergunta: poderia ele nos ajudar a encontrar um hotel no centro de Joanesburgo?, Mr. Simon ficou perplexo. “Vocês querem ficar no centro de Joanesburgo?” “É”. “Não, vocês não podem ir para lá”. “Como assim? Por quê?” “É que vocês seriam depenados lá, vocês perderiam tudo o que têm, dinheiro, chapéu, caneta esferográfica”, foi a resposta direta.

Mr. Simon acabou nos convencendo a ficarmos num hotel na periferia de Joanesburgo, numa das municipalidades vizinhas. Acabamos descobrindo um hotel em conta, e bom, em Randburg (Diz-se Rândbêrg, assim como se diz Joanêsbêrg, ou Jo'bêrg), e descobrimos que em Joanesbêrg a periferia é nobre e o centro é a periferia, inclusive a periferia da periferia.

Randbêrg é uma cidade de brancos. Negros ali, só trabalhando. Brancos consumindo. Ela segue o padrão comum nessa periferia estranha de Joanesbêrg: parece que estamos no cenário de um filme norte-americano levado às últimas conseqüências, com carrões velozes cujos condutores raramente olham para os lados. Avenidas enormes, shopping-centers com estacionamentos gigantescos e sem calçadas para pedestres (praticamente só os negros andam a pé). Destoam no filme norte-americano: a língua geral, que é o afrikaaner para os brancos (os negros falam zulu, também o afrikaaner); a direção à inglesa; e a inexistência de prédios altos: tudo é muito horizontal, apesar de no centro de Jo'bêrg estar o prédio mais alto da África: o Carlton Center (onde o respectivo hotel está fechado), de 50 andares, de onde, aliás, se tem uma vista de 360 graus sobre a cidade e arredores. Ah sim, a outra diferença em relação ao filme norte-americano é a quase ausência de chicletes.

Joanesbêrg, assim como Nairóbi, foi fundada ao final do século XIX. Jo'bêrg por causa do ouro. Até hoje existe mineração. Duas marcas da cidade são as cicatrizes das minas, que eram quase de superfície ou de superfície mesmo, com aquela terra revirada com ar de esterilizada, ou ainda colinas de areia dourada, onde há ouro misturado na areia mas não em quantidade que valesse a exploração.

Rand' é assim uma cidade “de brancos”. No hotel em que ficamos, a decoração nas paredes ainda evocava bucólicas cenas de golfe, com aquelas roupas fofas para homens e mulheres características de 50 anos atrás. Fica ao lado Sandton (pronuncia-se Santín), que é bairro mais chique dos arredores, onde ficam os hotéis de luxo, inclusive um cujo shopping visitamos e onde hoje existe um Espaço Nelson Mandela com a estátua enorme do próprio, sinal dos tempos.

Nas andanças pela cidade, Mr. Simon nos explicou algumas coisas.

Até doze anos atrás, os negros não podiam habitar o centro da cidade, nem outra municipalidade que não a de Orlando (Leste e Oeste), onde fica Soweto. Os negros não podiam, por exemplo, nem freqüentar certos espaços do centro, como o shopping center do Carlton, a não ser para trabalhar. Quando o apartheid caiu, milhares de negros de outros países, como da Nigéria, de Moçambique, da Zâmbia, de Angola e outros, acorreram para Jo'bêrg pensando em encontrar emprego. Não tendo onde morar, foram ocupando casas no centro da cidade

Os empregos não vieram, ao contrário, diminuíram para os negros, porque as empresas, os bancos, os hotéis, foram abandonando o centro e se instalando nas periferias, onde muitos desses negros não só não têm poder aquisitivo para morar, mas também não têm poder aquisitivo para lá ir trabalhar, porque é tudo muito longe e o transporte público é deficiente.

Resultado: no centro formaram-se gangues que tornaram o espaço inabitável não só para estrangeiros, mas para estranhos. Hoje há uma pressão para que isso mude, pois a perspectiva da Copa do Mundo (2010) aí está. O governo local instalou câmeras de TV em todas as esquinas. Mas parece que ainda não há empregos à vista.

Um detalhe: Mr. Simon disse-nos que algumas empresas, sobretudo bancos, estão voltando ao centro, inclusive comprando terrenos. O que me fez pensar que isso pode ser um excelente negócio, pois agora certamente os terrenos e prédios estão desvalorizados em relação ao que valiam e ao que valerão no futuro.

Depois tivemos o prazer de visitar o Carlton Center e seu quinquagésimo andar, uma fábrica de cerveja, onde inclusive provamos uma cerveja tribal, e o bairro de Soweto, e na companhia de Mr. Simon, que, além de ser nosso simpático chofer, é um veteranos das grandes revoltas estudantis de Soweto, na década de 70. Mas isso fica para amanhã.

Crônica de Joanesburgo (2)



Prosseguindo a crônica anterior, em que relatei a chegada minha e de Marcel Gomes numa Joanesburgo em que o centro é a “periferia”, na de hoje finalizarei minhas observações sobre nossa passagem pela cidade, pondo fim também a estas jornadas em terras africanas, feitas pela Carta Maior.

Depois de subirmos no Carlton Center, descrito nos folders locais como “the top of Africa” (mas não era o Kilimanjaro?, perguntei) por ser o edifício mais alto do continente, com 50 andares, fomos visitar uma fábrica de cerveja. Apesar dos resquícios da presença inglesa (por exemplo, no tráfego contra-mão), a cerveja em Joanesburgo é servida bem gelada, e bastante boa, havendo os tipos mais e os menos encorpados.

Na fábrica há toda uma mostra sobre a história da cerveja, em primeiro lugar. Ali tomamos contato com a deusa egípcia a cujo culto se atribui a origem do precioso líquido: Hator, uma deusa guerreira, sensual, e de gênio difícil. Há quem atribua a origem da bebida a uma outra deusa, Ninkasi, dos Sumérios. A cerveja teria sido introduzida no Egito para satisfazer os mais pobres, que não podiam pagar pelo vinho, a bebida de mais prestígio. Certamente a mídia da época, sempre alerta como a nossa, atribuiu essa introdução da cerveja no país dos Faraós a alguma política populista por parte dos deuses, algo assim como um cerveja-família, ou o programa cerveja-para-todos, de algum Faraó Tutankalula, ao fim do século IXX d. FHC.

O certo é que, como Noé é o primeiro homem de quem se sabe que tomou um porre, depois dos 40 dias na arca (também pudera, coitado), Hator é a primeira deusa de quem se sabe que tomou uma bebedeira federal. Diante de uma revolta dos humanos, seu pai, o deus Rá, enviou-a para castigar os petulantes. Hator não estava para brincadeiras, e resolveu exterminar os atrevidos. Rá, arrependido por tê-la enviado, recorreu a um estratagema: mandou servir a Hator 7 mil litros (!) de cerveja. Esta, como se sabe, não era loura, mas avermelhada e escura: Hator pensou estar bebendo sangue, e aplacou sua sede de vingança.

Também tomamos contato com Gambrinus (nome de um simpático restaurante no Mercado Público de Porto Alegre, fundado em 1890, e de um em Lisboa, fundado em 1936), legendário rei de Flandres e de Brabante lá pelos anos de mil e alguma coisa, a quem se atribui não só uma paixão especial pela cerveja, mas também a invenção do gesto de brindar. Passaram também um filme explicando como tribos faziam e ainda fazem uma cerveja rústica nas selvas e savanas. Provamos um pouco: cerveja amarga, de baixo teor alcoólico (2,5%), mas muito encorpada.

Dali nosso chofer, Mr. Simon, nos conduziu pela cidade através do centro, e dos bairros muçulmano e indiano até o legendário Soweto. Uma surpresa para a minha ignorância. Soweto não é uma favela. É um bairro onde há favelas. Mas há inúmeras ruas e casas de classe média. É que Soweto fica numa municipalidade, Orlando (dividida em Leste e Oeste), construída especialmente para os negros morarem lá pela década de 30, quando as leis do apartheid começaram a endurecer. Na região de Joanesburgo os negros só podiam morar lá, tanto os de classe média como os pobres e miseráveis. (Não havia uma burguesia negra). Embora os negros tenham a pele bem escura, característica do povo dominante na região, os zulus, o conceito de “negro” na África do Sul seguia a tradição da gota de sangue, “onde drop of blood”. Em Nairóbi entrevistei uma militante sul-africana da Via Campesina que tinha olhos verdes, cabelo louro-escuro e pele mais clara do que a minha, em que ressaltam ao lado dos genes portugueses, italianos, alemães e bávaros, os herdados de tradições guarani, charrua e africana. Eu, crestado ao sol africano, fiquei com fama de etíope. Pois ela, que perto de mim parecia vir do planalto de Santa Catarina ou do Paraná, era definida como negra na África do Sul, e tinha de seguir as leis discriminatórias do apartheid, coisa que, ela me disse, lembra sempre para seus filhos. Notáveis são tanto os requintes do preconceito reificador quanto a fibra e a capacidade de resistência daquela mulher admirável.

Em Soweto há de tudo. Nossa visita em detalhe começou pela única rua do mundo em que estão as casas de dois ganhadores do prêmio Nobel, Nelson Mandela e o bispo Desmond Tutu. Uma está em frente a outra. Há uma visitação a casa que foi (ele não mora mais lá) a residência de Mandela e de sua família depois de sua prisão. É uma casa simples, tipo sala-comedor-quarto-cozinha, hoje recheada de lembranças, fotos de antes de depois da prisão, mensagens a ele dirigida, títulos honoris causa e prêmios recebidos. É muito interessante. A entrada custa 20 rands, três dólares, e vale a pena. Do lado de fora, nos fundos, simpáticos repolhos ornam o jardim.

Depois Mr. Simon nos conduziu a um Memorial, dos mais tocantes e bem feitos que já vi. É o Hector Pieterson Memorial, na Khumalo Street. Hector Pieterson foi a primeira criança a morrer no dia 16 de junho de 1976, numa esquina que se avista do Memorial. A foto de seu corpo agonizante e baleado, nos braços de um outro jovem negro que corria desesperado, ao lado da irmã de Hector com o rosto contorcido pela dor e pela angústia diante do irmão ensangüentado, correu mundo naquela época.

Hector e centenas de estudantes estavam concentrados naquele 16 de junho para se juntarem a outros milhares e marcharem até a coordenação de ensino da região. Protestavam contra a obrigatoriedade, introduzida naquele ano, de estudarem em afrikaaner, a língua dos brancos locais, e não em inglês, como faziam até então. As escolas sul-africanas até hoje são muito competitivas, e naquele ano a nova medida provocou uma queda geral no rendimento dos estudantes.

Uma tropa de soldados e policiais enviada para contê-los, se viu envolvida pela massa de jovens, que começaram a apedreja-los e a gritar palavras de ordem. Até hoje não se sabe muito bem como saiu o primeiro tiro.

Um policial de má fama, Rooi Rus, codinome de Thems Swanepoll, morto em 1998 de câncer, reivindicou para si a “glória” de ter dado essa ordem. Mas atenção: pode ser uma bravata, pois essa reivindicação, diante dos mentores do apartheid, podia render pontos, favores e recompensas. Rooi Rus era conhecido torturador nas prisões de Joanesburgo e, em todo caso, se não deu, era capaz de dar uma ordem dessas.

O oficial comandante do destacamento depôs em inquérito posterior que a ordem não partira dele, e que ordem não houvera, o que pode levar à suposição de que algum ou alguns soldados, pressionados e despreparados para enfrentar a situação, achando que iam apenas enfrentar um bando de jovens e não o resultado de séculos de desigualdade e opressão inomináveis, tenham começado a atirar.

O primeiro atingido foi Hector, que caiu, ainda vivo, diante dos olhos aterrorizados de sua irmã, Antoinette Sithole. Um jovem mais velho, Mbuyisa Makhubo, que por ali passava, juntou o corpo e correu com ele mais Antoinette a seu lado em direção a uns carros. Um deles, de uma jornalista, abriu a porta para acolher o corpo e leva-lo a uma clínica próxima, onde o jovem já chegou sem vida. Antes disso, o fotógrafo Sam Nzima, do jornal The World, único que estava próximo, bateu a famosa foto que correu o mundo, testemunha de acusação contra um dos regimes mais brutais que a história já conheceu.

O que se seguiu foi horripilante. A tragédia de Hector só fez aumentar os protestos em Soweto e a repressão foi brutal e implacável. Não só houve uma repressão por parte de destacamentos abertamente enviados, e que passaram a recorrer sistematicamente às armas de fogo. Policiais, sem medo de serem fotografados, tal era a sensação de impunidade real, passaram a percorrer o bairro dentro de carros, atirando a esmo, mas sempre para matar, e visando especialmente os jovens.

Os protestos e a matança duraram três dias, e se estenderam por várias outras comunidades negras do país. Ao fim, só em Soweto havia cerca de 600 mortos, todos negros e quase todos jovens secundaristas. No total, mais de um milhar de mortos, ninguém sabe ao certo.

O fotógrafo Sam Nzima passou a ser vigiado e perseguido pela polícia do regime sul-africano. O jornal para que trabalhava, The World, foi fechado alguns meses depois. Nzima refugiou-se em territórios rurais ao norte da África do Sul, onde vive até hoje. Somente depois do fim do apartheid, em 1996, quando uma nova rede de imprensa comprou o espólio do The World e de outros jornais, é que teve reconhecidos os direitos autorais de suas fotos.

O jovem Mbuyisa Makhubo, que carregou o corpo ferido e depois morto de Hector, também foi perseguido pela polícia. Fugiu primeiro para Botswana, depois para a Nigéria, onde foi visto pela última vez. Sua mãe disse que ele desapareceu. É possível (penso eu) que viva incógnito, de nome trocado.

A jovem Antoinette mora em Soweto, onde trabalha em organização humanitária.

Tudo isso o Memorial evoca, em painéis e vídeos da época, e muito mais. Toda a história do apartheid e de Soweto é ali evocada, com uma simplicidade que só uma grande concepção arquitetônica e histórica pôde conceber. Ao final da visita há uma espécie de “jardim” interno, espaçoso e todo envidraçado. Mas é um jardim especial. O chão é dessas pedrinhas de construção, que servem para fazer a massa de cimento que faz o piso intermediário das estradas. E sobre elas estão jogados pequenos tijolos de granito vermelho, com o nome das vítimas e as variadas datas de nascimento, que contrastam com as poucas datas de morte: 16, 17, 18 de junho de 1976.

Além do belo e anti-retórico Memorial, Mr. Simon, nosso chofer, também ajudou a rememorar aqueles acontecimentos. Ele tinha 19 anos na época (Hector tinha 12) e estava nas marchas. Foi preso com milhares de outros jovens e militantes, interrogado, espancado, mantido por algum tempo numa solitária e depois solto sem maiores explicações. Contou-nos que depois do fim do apartheid muitos dos policiais que participaram daquela matança procuraram bispos e padres para se confessar e reconhecer as atrocidades cometidas.

Com esta menção à memória daqueles jovens que, como tantos outros, devem ser lembrados não como vítimas inermes, mas como combatentes da liberdade, encerro estas crônicas da visita à África realizada pela equipe da Carta Maior em janeiro de 2007, para a cobertura do VII Fórum Social Mundial.

Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.